terça-feira, 30 de outubro de 2012

O uso inadequado dos exames complementares

Prof. João Gilberto Maksoud
Professor Titular da Disciplina na Cirurgia Pediátrica do Departamento de Cirurgia da FMUSP
Chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas

Em 1982, escrevi sob o mesmo tema, onde procurei mostrar que a grande maioria dos exames complementares solicitados são dispensáveis ou desnecessários. Recentemente escrevi, a pedido, para a Revista de Medicina dos estudantes da Faculdade de Medicina da USP, outro editorial retomando mais uma vez o assunto.
Creio que, assim, esta minha antiga luta, pela racionalização do uso dos exames complementares, passa a ser mais conhecida, ao difundir uma orientação que há anos vimos imprimindo aos residentes da Disciplina de Cirurgia Pediátrica da Faculdade de Medicina. Mutos exames complementares são solicitados sem critério, de modo inadequado e indiscriminado, não atendendo ao princípio fundamental que é o de esclarecer diagnósticos ou situações específicas não passíveis de serem esclarecidos por outros meios. O problema tem se agravado com o passar do tempo, principalmente pelo aparecimento dos novos e fascinantes métodos de diagnóstico, fazendo aumentar o encantamento dos médicos, principalmente dos jovens, pelos exames complementares, gerando a falsa e mística sensação de estar praticando uma medicina
moderna, atualizada, segura e eficiente, quando, na realidade, trata-se de uma medicina desvirtuada, sem lógica e sem respeito ao doente.
Sinto que, por mais que tento apontar para a utilização racional dos exames laboratoriais e radiológicos, dificilmente conseguirei algum resultado pois este modo de agir foi moldado de maneira indelével no espírito e na formação profissional dos médicos. A necessidade compulsiva de solicitar exames está enraizada na cultura do médico, é parte integrante de sua formação acadêmica, sendo particularmente florida naqueles de atividade universitária. Nunca há a preocupação em se discutir o assunto em favor de um raciocínio lógico na solicitação dos exames. Poucos têm espírito crítico sobre a real necessidade de determinado exame. Algumas solicitações não são sequer inteligentes pois vasculham alterações ou situações passíveis de serem excluidas pelo exame clínico ou simplesmente pelo conhecimento da fisiopatologia das doenças. Para doenças apenas semelhantes ou para aquelas doenças diferentes mas que têm eventual ponto em comum, são sempre solicitados o mesmo conjunto imutável de exames laboratoriais para que o diagnóstico possa ser aclarado, quando um simples exame clínico poderia prescindir de vários deles.
A verdade incontestável é que quanto mais se conhece de determinada doença e de sua fisiopatologia, menor o número de exames que se solicita para seu diagnóstico. Mesmo tendo bom conhecimento fisiopatológico das doenças, alguns médicos continuam a solicitar exames desnecessários, pois não conseguem se libertar desta compulsão.
Muitos exames, mesmo alguns sofisticados, progressivamente passam de complementares a "exames de rotina". É freqüente vermos doentes com patologias relativamente simples ter seus prontuários repletos de exames inúteis, muitos deles sem qualquer conotação com o caso. Outras vezes, as solicitações de exames são desorientadas porque não buscam qualquer dado fundamental relevante.
O problema é maior em hospitais universitários, notadamente naqueles com maiores recursos diagnósticos, que têm maior possibilidade de dar vasão ao incontido prazer de solicitar exames. Nos hospitais escola, muitos exames são pedidos como parte de uma rotina, que nào deve existir pois os casos têm que ser individualizados, mas cuja rotina o médico jovem cm formação tem medo cie nào seguir com receio cie ser criticado por grave omissão! Ele é treinado para seguir a rotina ou o protocolo .sem raciocinar, mesmo dianic d c- alternativas ou possibilidades mais inteligentes e mesmo diante de casos que certamente não necessitariam seguir o protocolo. Daí a grande responsabilidade dos serviços universitários e dos responsáveis pelo ensino.Há quem não saiba diferenciar o ensino médico utilizando o raciocínio clínico, lógico, daquele que procura esquadrinhar a doença ou fazer diagnóstico apenas por meio de exames complementares.
É interessante notar como nas visitas médicas os casos clínicos são apresentados pelos residentes e até por médicos mais experientes como indisfarçado prazer e orgulho, quando repletos de exames complementares. Quanto mais complexos, coloridos e bonitos, maior a felicidade e o orgulho. Ficam surpresos e decepcionados quando mostramos que vários exame são inúteis ou desnecessários. Muitos exames são solicitados apenas para ter o caso muito bem
documentado(palavra terrível para o doente, perigosa para o residente e maléfica para o ensino médico).O que é mais incompreensível e lamentável é como, mesmo identificado o erro, o mesmo é aceito passivamente,de modo indiferente, sem que se esboce qualquer tipo de reação ou contestação, permitindo que o erro se perpetue, como se o mesmo não existisse. Toda vez que procuramos discutir a questão, o assunto é rapidamente desviado ou visto com ironia, como se isso fosse absolutamente secundário, pouco significativo, desprezível, anedótico. Existem vários e freqüentes tipos de inadequação na solicitação dos exames.O primeiro é a repetição de exames recentes, quando nada foi feito e nada ocorreu para que o resultado anterior pudesse ser modificado. Parece que o médico está tão inseguro que não acredita no que está vendo ou não conseque entender o que está vendo e solicita novamente o mesmo exame para ver se algum fenômeno desconhecido modifica o resultado inicial. Há uma generalizada adoração pelos eletrólitos plasmáticos e pelos testes de função hepática, solicitados para qualquer situação clínica, qualquer doença, mesmo naquelas sem a remota possibilidade de apresentar
alteração destes parâmetros.
Outro erro freqüente é a solicitação de ultrassom, radiografia simples e/ou tomografia computadorizada em situações nas quais não há indicação. Toda vez que o médico não sabe o que fazer ou está inseguro, solicita ultrassom, mesmo em casos que a radiografia simples do abdome ou o ultrassom nada podem indicar. Estes exames são freqüentemente solicitados na suspeita de apendicite aguda, hérnia inguinal, hidrocele, cistos cervicais, cistos superficiais palpáveis e visíveis(I), criptorquidia e outras condições nas quais jamais o ultrassom deve ser solicitado por ser totalmente inapropriado ou desnecessário. O diagnóstico da apendicite aguda é feito única e exclusivamente pelo exame físico; qualquer exame solicitado, repito, qualquer, sem exceção, é desnecessário, pois não faz o diagnóstico diferencial.
Na dúvida, aguarde a evolução e a natural definição do caso.
Creio que uma maneira sensata de se verificar a validade e adequação de determinado exame é tentar responder
as seguintes indagações, que servem como verdadeiro instrumento de auto-controle:
1. O exame é realmente indispensável?
2. Este exame exprime efetivamente o que pretendo investigar?
3. O exame é importante para o diagnóstico, prognóstico, para estabelecer ou alterar determinada conduta?
4. O exame irá mostrar algum fato que já conheço ou que não possa ser esclarecido por um exame menos invasivo, mais simples, pelo simples exame físico ou por outro exame já solicitado e cujo resultado já conheço?
5. Finalmente, poderei, algum dia, dispensar este exame, quando entender melhor esta doença e tiver mais confiança no que estou fazendo?
Asssim, acredito que, na maioria das vezes, os exames são solicitados por insegurança, pois a experiência permite prescindir de exames; a segurança, a experiência e o seguro conhecimento fisiopatológico das doenças superam qualquer exame complementar.
Ao expor esta maneira de pensar, viso o respeito a criança, o raciocínio claro, a conduta inteligente de cada caso e um ensino médico mais sensato.
Fico feliz em verificar que para aqueles com quem convivo mais freqüentemente, os residentes e colegas do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Instituto da Criança, esta minha doutrina encontra eco.